Boletim – Nº 02 | Março 2018
EDITORIAL
ARTIGO DO GONZALO LOPEZ
Educação Especial “ao longo de toda vida” ?
Recentemente foi aprovado no Congresso Nacional o PLC nº 75/2017 que visa garantir expressamente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB ou LDBEN), a oferta da educação especial ao longo de toda vida. E, ao que parece, o PLC pretende garantir essa oferta às pessoas com deficiência através do encaminhamento para “turmas” voltadas à educação de jovens e adultos (EJA). O PLC acrescentou ao caput do artigo 37 da LDB que o EJA será instrumento de educação e aprendizagem ao longo de toda vida. Aparentemente tal alteração é inofensiva tendo em vista que possibilitará, ao longo de toda vida, o acesso à aprendizagem “àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fundamental e médio na idade própria”. No entanto, o inquietante não foi o (desnecessário) acréscimo no artigo citado, mas conjugar essa adição com a alteração da redação do parágrafo 3º do artigo 58 que, agora, passará a prever (após a provável sanção presidencial do citado PLC) que “a oferta da educação especial terá início na educação infantil e se estenderá ao longo da vida”.
O primeiro aspecto fundamental a ser considerado na análise é esclarecer que as novas redações dos dispositivos citados só terão validade se referentes à perspectiva da educação especial inclusiva, afinal, essa é a única opção com base no sistema jurídico brasileiro. Juridicamente, a “educação especial”, sem a perspectiva inclusiva, deve ser complementar ou suplementar e, portanto, não pode ser ofertada ao longo de toda vida de forma substitutiva à educação regular em classes comuns.
Considerando que se trata de educação especial na perspectiva inclusiva, em consonância com o ordenamento jurídico nacional, a tal oferta “ao longo da vida” deve se restringir apenas à garantia de atendimento educacional especializado (AEE) às pessoas com deficiência que não tiveram acesso à educação regular na idade própria e precisam do EJA para isso. Assim, ao se matricularem na educação de jovens e adultos, as pessoas com deficiência também devem ter garantido o acesso ao AEE no EJA. No entanto, é fundamental realçar que tal alteração é, no mínimo, desnecessária, pois tal garantia já estava respaldada, por exemplo, pelo Decreto nº 7.611/2011 e inúmeros outros dispositivos.
Ato contínuo na análise, importante destacar que, no ordenamento jurídico pátrio, não há garantia de oferta educacional e permanência em sala de aula “ao longo de toda vida” para nenhum brasileiro ou brasileira. O artigo 4º, inciso I da LDB, de forma expressa, delimita entre 4 e 17 anos a idade educacional, inclusive, observando mandamento constitucional (Art. 208, I) nessa delimitação. Por outro lado, de forma absolutamente diversa, o que se garante é acesso ao EJA aos que não tiveram acesso à educação na idade apropriada. Dessa forma, não se garante (tampouco se deseja) a permanência em sala de aula ao longo de toda vida de maneira permanente e contínua, porventura, perpétua para ninguém. É assegurado apenas o acesso à formação adequada num período de tempo específico para que a pessoa se capacite e siga sua vida no mercado de trabalho e convivendo socialmente noutros ambientes mais adequados à sua interação e vida em comunidade ao longo de sua vida.
Outro aspecto a ser analisado é sobre a alteração do parágrafo 3º do artigo 58 que passa a apresentar, em sua parte final, as referências ao art. 4º, III e ao parágrafo único do artigo 60, ambos da LDB. Remeter a tais dispositivos ao longo do processo legislativo (no Senado) foi salutar diante do projeto de lei originário que se apresentou. Apesar disso, é necessário esclarecer que a presença do caráter preferencial em ambos os dispositivos, somente pode se referir quanto à ampliação dos atendimentos na rede regular e do AEE, não havendo opção para formação da pessoa com deficiência fora das salas de aula comuns, todas devem estar obrigatoriamente em salas de aula comuns.
O caráter “preferencial” conexo à rede regular é restrito à oferta do atendimento educacional especializado como determinam o a Meta 4 do Plano Nacional de Educação e o próprio texto constitucional (art. 208, III). O caráter preferencial não se estende à oferta da educação especial como pode pretender a alteração ao conjugar previsões entre EJA e educação especial. A oferta de educação ao estudante com deficiência deve ser na classe comum e o AEE, preferencialmente, na rede regular.
Não deverá ser entendido como permitido, a título de se “ofertar educação especial ao longo da vida”, o encaminhamento dos estudantes com deficiência ao EJA como forma de propiciar “o aprendizado ao longo de toda vida” previsto na Convenção. É um equívoco relacionar educação especial e EJA nesse sentido, em especial, conectados pela forte orientação: “ao longo de toda vida”. Caso essa conexão ocorra de forma desvirtuada que somente considere a “educação especial” nos moldes anteriores à política de 2008, poderá, no futuro, institucionalizar e legalizar o encaminhamento irrestrito de pessoas com deficiência ao EJA sem que se tenha a obrigação legal de pensar em fixação de idades limites para o ambiente escolar e, por via de consequência, sem pensar também na preparação para o mercado de trabalho ou na inclusão em outras dinâmicas fora da escola quando houver a impossibilidade de inserção no mercado de trabalho, tais como: atividades musicais, gastronômicas, culturais, esportivas, entre outras que devem substituir o ambiente escolar na vida de pessoas adultas, com ou sem deficiência. A educação especial inclusiva só pode ser ofertada fora da idade apropriada àquele que não teve acesso no tempo devido e com regras e prazos adequados para construção do aprendizado que possibilite a vida em comunidade.
É verdade que o caput do artigo 24 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência prevê o “aprendizado ao longo de toda vida”, mas, por óbvio, não é esse tipo de aprendizado (dentro de uma sala de aula eternamente) a que se refere o dispositivo. A Convenção visa garantir um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem com o aprendizado ao longo de toda a vida (caput, Art. 24), mas não perpetuamente dentro de salas de aulas e sim com a participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre (Art. 24, 1, c), com acesso ao ensino superior em geral (Art. 24, 5) e possibilitando às pessoas com deficiência o acesso efetivo a programas de orientação técnica e profissional e a serviços de colocação no trabalho e de treinamento profissional e continuado (Art. 27, 1, d).
A permanência em salas de aula por toda a vida não é salutar nem desejada por nenhuma pessoa (com ou sem deficiência) que tenha outras opções. Por que prever essa possibilidade para pessoas com deficiência? Há a pretensão de somente lhes oferecer esse caminho? A quem interessa que as pessoas com deficiência permaneçam “ao longo de toda vida” restritas às “salas de aula” e excluídas do convívio social? São perguntas inquietantes que surgem com as alterações, se mal interpretadas na vida prática. A pessoa com deficiência, ao longo de toda sua vida, deve ocupar outros espaços e não somente o escolar. Menos ainda devem permanecer segregados como tende a ocorrer com salas destinadas aos programas para educação de jovens e adultos que acabem por “acumular” pessoas com deficiência.
O PLC possibilitando, expressa e legalmente, a oferta e, possível, permanência na “educação especial ao longo de toda vida” parece iniciar um processo com intuito de abrir exceções à oferta obrigatória do AEE, bem como se desdobrar numa exceção à proposta do PNE de (até 2024) garantir a educação regular para todos, sem exceção.
E mais: tem potencial para atingir diretamente o fluxo de pessoas com deficiência para programas de inclusão no mercado de trabalho. Afinal, sem o final do processo educacional, como ficaria a inclusão no mercado de trabalho?
Um último ponto absolutamente crítico: parece fortalecer a ideia de que as pessoas com deficiência realmente precisam permanecer por toda vida na escola! Uma visão altamente capacitista. Não se deve pensar em escola para adultos, mas em trabalho ou outras possibilidades adequadas às habilidades e competências de cada pessoa, sob pena da escola (através do EJA) se tornar um depósito institucional de pessoas segregadas.
Por fim, há necessidade de se monitorar a interpretação e aplicação de tais acréscimos na Lei de Diretrizes e Bases e, sobretudo, de maior atenção aos processos legislativos sobre educação que tramitam no Congresso Nacional, por exemplo, tentam aprovar a flexibilização da presença de estudantes com deficiência sem qualquer necessidade de justificativas biopsicossociais. Juntando a possibilidade de EJA por toda vida com a desobrigação à presença, qual será o destino de muitos estudantes com deficiência?
O desmonte da Política de Inclusão por setores que o pretendem fazê-lo não pode ser por via direta, afinal, a educação de pessoas com deficiência na rede regular (comum) é garantida pela Constituição, pela Convenção com status de emenda constitucional e foi ratificada na decisão da ADI 5.357 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Por isso, é importante manter a atenção com as “pequenas mudanças” aparentemente “inofensivas”. Provavelmente, serão os primeiros passos de um caminho oblíquo para o desmonte da inclusão e o retorno à segregação de pessoas com deficiência no ambiente educacional não de forma prevista em lei, mas por imposição de condições que não deixem escolhas às famílias.
Gonzalo Lopez