Por Ana Cláudia Mendes de Figueiredo*
Nesta semana o Congresso Nacional derrubou o veto total do Presidente da República a um Projeto de Lei que amplia o teto para o recebimento do benefício de prestação continuada, de ¼ para ½ salário mínimo.
O argumento do Governo para a não efetivação dessa ampliação é a inviabilidade orçamentária, enquanto o argumento dos parlamentares que defendem a manutenção do aumento do teto é o resguardo da dignidade humana.
Na queda de braço entre o Congresso e o Poder Executivo, milhões de brasileiros em situação de miserabilidade social podem levar a pior.
O benefício de prestação continuada
O benefício de prestação continuada, conhecido como BPC, consiste na garantia, prevista na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, de um salário-mínimo mensal às pessoas idosas e com deficiência que demonstrem não possuir meios de prover o próprio sustento nem de tê-lo provido por sua família. É uma política de transferência de renda destinada à proteção social de membros da sociedade que perderam os meios de subsistência em circunstâncias alheias à sua vontade e tem como objetivo imediato viabilizar o gozo de direitos básicos, como alimentação, moradia, vestuário e cuidados com a saúde.
O requisito econômico para a concessão do benefício consiste em renda mensal por pessoa da família não superior, atualmente, a ¼ do salário mínimo. Em outras palavras, para fazer jus ao BPC o resultado da divisão do total dos salários dos familiares – que vivem na mesma casa – pelo número de membros da família não pode ultrapassar, hoje, o valor de R$ 261,25.
Inviabilidade orçamentária x dignidade humana
O Projeto de Lei objeto de controvérsia entre Executivo e Legislativo eleva o teto atual para ½ salário mínimo, aumentando não o valor do benefício, que segue sendo de 1 salário mínimo, mas o número de pessoas que passarão a ter acesso a ele.
A inviabilidade orçamentária, alegada pelo Ministério da Economia, decorreria da ausência de indicação de uma fonte de recursos para compensar a despesa adicional. Tal ausência, contudo, pode ser suprida pelo próprio Poder Executivo, com autorização legislativa, por meio de realocação de recursos orçamentários. Ademais, o aumento da despesa seria compensado também, em certa medida, com o retorno gerado pelo consumo das famílias alcançadas por essa política de transferência de renda.
De outro lado, o argumento do Governo não pode impedir a materialização do direito ao benefício assistencial ante seu caráter de direito humano. Isso porque o BPC destina-se à garantia da vida e do atendimento às necessidades essenciais de pessoas que se encontram abaixo da linha da pobreza. Destina-se ainda à redução de danos e à melhoria da situação de risco social em que se encontram.
De fato, o público ao qual se destina o benefício é um público que, além de enfrentar as dificuldades próprias das pessoas de baixa renda, precisa, em sua maciça maioria, enfrentar custos com medicamentos e cuidados médicos, que aumentam com o avanço da idade. As pessoas com deficiência precisam arcar ainda com o custo adicional da deficiência, decorrente de gastos extras desencadeados pelos impedimentos do corpo e barreiras que lhes são impostas.
O benefício, nesse contexto, contribui, inequivocamente, para a promoção da dignidade dessa população. Contribui, também, para a universalização de outros direitos fundamentais, a exemplo do direito à educação.
Inconstitucionalidade do critério já declarada pelo STF
Aspecto importante a ser lembrado nesse debate é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Desde a edição da LOAS, em 1993, o requisito econômico tem sido alvo de intensos debates judiciais, tendo a Suprema Corte decidido, em 2013, rever seu entendimento para reconhecer a inconstitucionalidade do critério adotado na citada Lei, de renda inferior a ¼ do salário mínimo. O STF compreendeu, entre outros motivos, que o fato de várias leis já adotarem o valor de ½ salário mínimo como requisito para a concessão dos respectivos benefícios constituía um indicador de que aquele critério estaria defasado e inadequado para “aferir o estado de miserabilidade social dos indivíduos”. Com isso, o Supremo reconheceu a omissão do Estado brasileiro em relação ao seu dever de prestar assistência social a quem dela necessitar.
Como o Supremo não decretou a nulidade da norma, cabia ao Poder Legislativo, ou ao Executivo, desde aquela ocasião, corrigir a detectada contrariedade à Constituição, elaborando uma lei capaz de materializar o direito fundamental à assistência social, em observância à decisão do órgão máximo do Poder Judiciário.
A inadmissível resistência do Poder Executivo
Consideradas, enfim, a compreensão do Plenário do STF a respeito do tema e a demora na elaboração de lei hábil a corrigir a inconstitucionalidade apontada por esse Tribunal, é inadmissível a resistência do Poder Executivo em relação à ampliação da renda para o recebimento do benefício assistencial.
A decisão, agora, de manter ou não, a elevação desse teto caberá ao Plenário do
Tribunal de Contas da União, uma vez que um dos seus Ministros, em atenção a um pedido de medida cautelar do Ministério da Economia, determinou a suspensão de tal ampliação. Incumbirá ao STF, entretanto, na sequência, dar a última palavra no caso, por envolver matéria constitucional.
O adiamento eterno do Governo federal em atender as necessidades mais básicas de pessoas desvalidas atenta, acima de tudo, contra o direito humano dessa população à proteção social imprescindível a uma vida minimamente digna.
* Ana Cláudia Mendes de Figueiredo. Advogada. Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Conade e Coordenadora do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD, que integra a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Rede-In.